quinta-feira, 7 de abril de 2016

Ministro e cultura

Um senhor ministro da cultura que se serve de um determinado espaço que lhe foi dado no jornal Público para tornar todo um enredo no pasquim e dizer que não cumpriu uma promessa de há não sei quantos anos, altura em que tinha garantido para si mesmo que se visse determinada pessoa na rua lhe dava uma mão cheia de bofetadas; tudo porque, como defende, se escreveram calúnias e mentiras a seu respeito e, de acordo com as ameaças atiradas para praça pública, para ele, ministro da cultura, as coisas só se resolvem à antiga.

Mais grave do que um ministro qualquer oferecer porrada a alguém, é esse ministro ter vindo a público dizê-lo/oferecê-lo. Até se trata de uma situação mais grave porque quando escrevemos conseguimos ser estranhamente mais racionais do que quando falamos - e aquele homem, no auge da sua racionalidade, ofereceu porrada ao Vasco Pulido Valente e a mais outro.

Aquilo que vejo como maior problema até se trata da velha máxima do costume: a liberdade de expressão é sempre um conto de fadas muito bonito, mas se metem parte de nós ao barulho numa aglomeração de palavras mais ou menos depreciativa está o cabo das tormentas instalado. E isso talvez até seja problema nosso, de ser português: temos o peito demasiado exposto, susceptível. A maneira que o João Soares arranjou de tentar ultrapassá-lo, ao cabo, foi referindo-se à promessa que tinha feito para consigo mesmo e não tinha cumprido e alargando-a para domínio público, talvez não sabendo o quão ridículo isso iria soar: primeiro estamos no século XXI e quando uma pessoa se torna política é quase um pré-requisito fundamental saber que vão sempre existir opiniões más sobre nós e que elas vão circular à nossa volta, depois também acontece que o Vasco Pulido Valente diz mal de gregos e troianos e nunca o li dizer bem de nada - um troll sex/septagenário a quem dá gozo ser levado a sério. E julgo que na pasta da cultura devia estar bem cimentada a noção e os valores da liberdade de expressão, porque a cultura parte daí.

No outro dia, um homem escreveu coisas menos boas sobre o Alentejo e sobre os alentejanos, agrupou-as num livro e foi apresentá-lo país fora; no dia da apresentação do mesmo foi necessária a presença da polícia, porque se anteviam algum tipo de desacatos devidos aos alentejanos que se sentiam indignados com o que fora escrito terem ido lá parar. De certa maneira, para tirar as suas satisfações e chamar-lhe cabrão e afins pelas coisas mais absurdas alguma vez escritas. Eu até posso nem concordar com quem escreveu sobre o Alentejo e sobre os Alentejanos (sobretudo porque me falta ser alentejano para ter conhecimento de causa), mas sei que é um pensamento tão válido ou inválido quanto aqueles que o veneram, tão válido ou inválido quanto aquilo que penso acerca de toda aquela plana paisagem semeada de oliveiras. E o que faltou ao João foi tudo isso, saber que as opiniões existem e são díspares entre si, mas foi sobretudo o esquecer-se de quem ele próprio acredita ser: um ministro. Da cultura, mas sem a cultura para perceber que as coisas não se devem premeditar assim.



terça-feira, 5 de abril de 2016

Senhor Atento

Quando desperto cedo e cedo saio de casa tenho por hábito parar algures entre a travessia para despertar em condições,

de certa maneira talvez também o faça com o intuito de dar uma maior abertura aos cada vez mais cerrados meus olhos, que quase já não conseguem sustentar os efeitos inerentes a uma variada forma de não dar o descanso devido à minha própria actividade cerebral, os fusos horários dispersam-se e os sonos, quase como sonhos fictícios de onde retirámos pouco conteúdo, acontecem de dia enquanto nos vamos anoitecendo dia fora. as pálpebras incham e a abertura dos olhos, ou o seu tamanho aparente, dilata, e embora o esforço iminente pelos seus contornos estéticos quase ovais, ali sob um afastamento de poucos milímetros em relação ao perímetro do olho, sejam bem notáveis e salientes a olho alheio, sempre mais salubre que o meu, daquilo tudo já nada me pesa ou interfere. às vezes tendemos a apelidar revestimento ocular de olheiras, sobretudo quando elas ainda não são um quotidiano, quando se dá o acaso delas se salientarem e de haver alguém que repare e questione com um mas então, que cara é essa, passaste mal a noite? A partir do momento em que estas começam a ser rotineiras e permanentes nos traços do rosto, embora perdendo o balanço do negro que dominava o espectro cromático que outrora era mais intenso e passível de se notarem efectivamente aquelas olheiras, é possível prever que essa pessoa sustenta o acaso da dispersão de fusos, do pensar demasiado e do de se escrutinar imenso e as olheiras brotam desse nossa busca desgraçada pelo interior. No entanto, isso das olheiras já é quase crónico e é um capítulo encerrado que já nem sequer pesa, que já é irrelevante por ser uma coisa tão ligada à rotina. Neste caso concreto, a leveza só me chega a partir de um café-cigarro. de certa maneira, e salve-se a epopeia e o heroísmo transcendente a uma aliança entre um camada de tabaco entubada numa mortalhinha queimada posteriormente à degustação de simples grãos de café em estado aguado, essa bela sequência e posteriores consequências conseguem-me fazer com que sinta menos o fardo, não o das olheiras que isso já deixou de ser,  mas o facto de ter de acordado cedo

hoje não foi excepção. Acordei pouco depois das sete e meia da manhã. Vesti-me, fiz a mochila e lá estava eu prestes a sair de casa, totalmente apto para fazer a minha travessia rumo à avenida principal da cidade, percurso que iria ser obrigatoriamente pausado em sítio algures num café onde se pudesse fumar lá dentro, de preferência onde o café fosse potente q.b. para me abrir os olhos ou, de certa maneira, para me sentir confiante que isso tenha acontecido

- é tão mais frequente a vez em que nós partimos das (nossas) crenças  e as cremos como factos, embora ainda que só sejam nossos, do que nós partirmos dos factos para gerar as nossas próprias crenças (aí estamos totalmente ausentes de percepção) e aqui o único facto é científico e diz que o café desperta -

depois, uma vez desperto, lá seguiria eu para o meu destino inicial: a paragem de autocarro que me traria até aqui a partir de onde agora escrevo. Tinham-se passado uma dezena de minutos quando dei contas da minha decisão quanto à paragem: estava a subir a espécie de mini-escada composta por dois degraus que dá acesso ao café do costume, o café onde me sirvo para abastecer tabaco de enrolar e, em tempos de urgência, para comprar daquelas mortalhas de combustão lenta que são precisas à queima-roupa e é claro que também dou tributo aos travesseiros lá vendidos a metade de um euro, basicamente cumpria os pré-requisitos: café potente, sala de fumadores e bom ambiente.

I

-Diz, jovem

- Bom-dia. É um café, por favor.

respondi-lhe enquanto me acomodava junto ao balcão. enquanto as pérolas do café se revestiam de água e se liquidificavam num todo espumoso, o senhor do café, o senhor Atento, mantinha alguma conversa com os seus clientes. aproveitei esse compasso para enrolar um cigarro. e foi ali que comecei oficialmente o dia, por crença, totalmente mais animado e com mais vontade em aproveitar o sol que vinha lá de fora e que aquecia ali aquele entrada que quase convergia com o início do balcão. mas o ambiente estava tão agradável que me deixei acomodar pelo bater do sol que ali adornava aquela zona e não satisfeito decidi celebrar o começo do dia numa repetição da dose: todo ali empastado ao balcão a pedir um segundo café e a enrolar um segundo cigarro (sim, mas não me massacrem já antecipadamente pelos dois cigarros compassados por um intervalo de tempo tão escasso, que não o costumo fazer por hábito). as pálpebras ficticiamente já estavam menos inchadas e menos disformes, agora focava-me no que me chegava aos ouvidos, nas conversas em paralelo que se iam estabelecendo naquele café, naturalmente acabei presos a uma em que o senhor Atento estava inserido

(do senhor Atento nunca soube muito por empatia profunda deste em reservar-se, nunca me disse muito mais além de me inquirir acerca das minhas pretensões enquanto cliente do seu estaminé, um bom-dia e o que vai querer?, um café é só um minuto. esta, regra geral, é, ou sempre foi a diversidade de expressões de que se mune para me receber e tratar. é o caso inverso da sua mulher por exemplo, que habita no estaminé em horários dedicados ao descanso do marido que, como já me contou uma vez, entre tantas outras coisas, que o seu marido teve de tomar decisões de uma complexidade tamanha e que talvez daí advenha este seu jeito peculiar em ser

- é engraçado conhecer as estórias das pessoas pela voz das pessoas que lhe são próximas – por norma as coisas tornam-se sempre mais coloridas, quem assume o papel de orador consegue-se transcender na escala das emoções e consegue superar um pequeno obstáculo que é inato quando toca a falar da vida com quem a versa – há sempre premissas exteriores que impedem que essas estórias, as que temos dos outros, nunca cheguem nos mesmos moldes a quem as escreveu e desconfio que o problema disso não seja propriamente nosso, ou da esposa do senhor Filipe, ou meu, é comum a todos nós que nos regemos pelas emoções e pela documentação delas – uma documentação requer um contexto e o que ficou para trás é hoje mirado com fascínio. do senhor Atento se pinta um respeitável e admirável homem por uma série de estórias que aqui não vou agrupar, talvez um dia haja um contexto melhor para documentar tudo isso

- mas eu nunca consegui ter argumentos para lhe traçar um perfil fidedigno, por falta de interacção, suponho. por detrás de um balcão cai sempre bem a reserva de quem o protege porque isso se reveste também numa espécie de auto-protecção sabe-se lá contra e porquê, mas também pode cair bem o contrário (e até é mais frequente a gente deixar-se cair em graça por esta doutrina, a do senhor Simpático). de qualquer maneira, só existe um parâmetro totalmente fiel e isento de analisar tudo isto: quem lá for, ao café do senhor Atento, será sempre visto como um cliente, logo há toda a legitimidade do mundo em que ele queira adoptar esta maneira de abordar o seu dever, a da isenção – a da inconsciente auto-protecção que as pessoas fazem de e para si)

nunca o tinha visto a ser muito comunicativo durante um largo período de tempo, embora quase sempre achasse pertinente aquilo que dizia; do esquisso de primeiro grau que lhe tracei estou há anos a limar arestas à sua volta e hoje subitamente aparece-me ele todo lampeiro, pronto para me foder a modelação, quebrar alicerces e obrigar-me a repensar sobre tudo vindo aqui a escrutinar acerca do que me disse

II

em primeira instância a abordagem até mim foi outra, um dos clientes verbalizava em voz alta a ideologia que queria implementar na sua capoeira das galinhas – uma ideologia fascista, mas aplicada a galinhas, galos e derivados, a vertente da diferenciação cromática, no fundo a apologia ao racismo, mas em galinhas, galos e derivados. não o sei o nome do senhor que sustentava a sua pobre e risível tese, mas o senhor Atento interessou-se em saber as razões que estavam na origem da vontade daquele homem, que às oito da manhã já estava a malhar o seu segundo martini com cerveja, em querer separar os galos por cores. os contornos da história alargaram-se e então passou a saber-se que naquela capoeira havia um galo, que era de uma tonalidade diferente da de todos os outros, que era problemático e que por ser o único que era problemático devia ser totalmente isolado,

-meto lá uma rede, a meio da copeira, e isolo aquele filho da puta que não me deixa dormir sempre a meter-se com os outros cabrões. Só não o mato

ainda não morto porque ainda não está no ponto, mas que devia ser separado todos os demais. Daí que o senhor Atento tenha-lhe dito que aquilo era estúpido, brincando com a situação, mas dizendo em tom sério

- faça um muro grande lá pelo meio, que é oportunidade de negócio aqui para este camarada. já o vi fazer aí projectos no AutoCAD, ele faz-lhe um projecto de saldo e assim você pode ser um nazi à vontade, não é verdade?

Aquilo causou gargalhada e um posterior silêncio, por eu nunca saber muito bem como reagir a este tipo de situações (de vez em quando assombra o constrangimento social). disse-lhe que estava atento ao que se passava em seu redor, pelo pormenor de autoCAD, enquanto lhe sorria e retirava da carteira o dinheiro que me seria cobrado pelos dois cafés. Pago, o senhor Atento dá-me a factura, entrego-lhe a moeda de um euro e as duas moedas de cinco cêntimos, ele recebe-as, dou a volta, pego na mochila que estava no chão, coloco-a às costas e preparo-me para dizer bom trabalho, e obrigado mas foi interrompido antes sequer de dar indícios que algo iria ser verbalizado por mim. era a voz do senhor Atento a atentar-me:

III

- as olheiras pesam, tem cuidado, que não te tenho visto de outra maneira e lembro-me que até tinhas uns olhos todos verdes e abrilhantados quando eras mais novo. (dá-te descanso e lembra-te sempre que descanso não é a ausência de trabalho. às vezes a ausência de trabalho ou de algo que nos torne activos é que te cansa, é um belo paradoxo porém menos ambíguo que tudo aquilo que passe por nós. são as alternativas e os vários caminhos que nos distraem, não é a viagem em si. não durmas, mas pensa menos rapaz). da fonte áudio só saiu o pedaço de texto que não está limitado por parênteses, a outra parte foi a subentendida e do senhor Atento, do pouco que lhe atentei

sei tem um cartaz de cortiça totalmente preenchido por identificações dos ciclistas, com aquelas numerações todas, numa das paredes do seu café – é um devoto das duas rodas e gosta de ver, ao mesmo tempo que a TV transmite a corrida, o percurso que os ciclistas têm de fazer, subidas e descidas– vê-o no Google Earth e fá-lo, presumo para traçar previsões acerca do futuro da corrida, escrutinar acerca do futuro, pensar e prever e o seu próprio raciocínio. no fundo, isso faz dele um interessado em saber: esse simples facto serviu de fio condutor para que pudesse traçar e esculpir moldes para que assentar todas as minhas previsões do senhor Atento como alguém que goste de saber, mas hoje fiquei a saber que são os senhores Atentos das nossas vidas que às vezes nos podem guiar, nos podem acompanhar de uma maneira tão pouco presente que isso lhes dá espaço e tempo para se aprofundarem em pequenas coisas de nós.


em tons de poesia apetece dizer que nós somos Senhores Atentos de alguém e isso, podendo não ser suportado por uma relação recíproca, quer dizer que todos nós todos somos passíveis de ter um desses senhor à nossa beira, seja isso no café, na caixa de super-mercado ou num desses pequenos espaços onde estamos sujeitos a esses olhares mais isentos. e é sempre bom ter na retina a fruto da retina de outra pessoa, seja por uma olheira mais vincada ou por três pedaços de vida que nos tiraram: de alguma maneira, de olhares distantes e longínquos se faz a primavera e esta ainda agora começou.