Quando desperto cedo e cedo saio de casa tenho por hábito
parar algures entre a travessia para despertar em condições,
de certa maneira talvez também o faça com o intuito de dar
uma maior abertura aos cada vez mais cerrados meus olhos, que quase já não
conseguem sustentar os efeitos inerentes a uma variada forma de não dar o
descanso devido à minha própria actividade cerebral, os fusos horários
dispersam-se e os sonos, quase como sonhos fictícios de onde retirámos pouco
conteúdo, acontecem de dia enquanto nos vamos anoitecendo dia fora. as
pálpebras incham e a abertura dos olhos, ou o seu tamanho aparente, dilata, e
embora o esforço iminente pelos seus contornos estéticos quase ovais, ali sob
um afastamento de poucos milímetros em relação ao perímetro do olho, sejam bem
notáveis e salientes a olho alheio, sempre mais salubre que o meu, daquilo tudo
já nada me pesa ou interfere. às vezes tendemos a apelidar revestimento ocular de
olheiras, sobretudo quando elas ainda não são um quotidiano, quando se dá o
acaso delas se salientarem e de haver alguém que repare e questione com um mas
então, que cara é essa, passaste mal a noite? A partir do momento em que estas
começam a ser rotineiras e permanentes nos traços do rosto, embora perdendo o
balanço do negro que dominava o espectro cromático que outrora era mais intenso
e passível de se notarem efectivamente aquelas olheiras, é possível prever que
essa pessoa sustenta o acaso da dispersão de fusos, do pensar demasiado e do de
se escrutinar imenso e as olheiras brotam desse nossa busca desgraçada pelo
interior. No entanto, isso das olheiras já é quase crónico e é um capítulo
encerrado que já nem sequer pesa, que já é irrelevante por ser uma coisa tão
ligada à rotina. Neste caso concreto, a leveza só me chega a partir de um
café-cigarro. de certa maneira, e salve-se a epopeia e o heroísmo transcendente
a uma aliança entre um camada de tabaco entubada numa mortalhinha queimada
posteriormente à degustação de simples grãos de café em estado aguado, essa bela
sequência e posteriores consequências conseguem-me fazer com que sinta menos o
fardo, não o das olheiras que isso já deixou de ser, mas o facto de ter de acordado cedo
hoje não foi excepção. Acordei pouco depois das sete e meia
da manhã. Vesti-me, fiz a mochila e lá estava eu prestes a sair de casa,
totalmente apto para fazer a minha travessia rumo à avenida principal da
cidade, percurso que iria ser obrigatoriamente pausado em sítio algures num
café onde se pudesse fumar lá dentro, de preferência onde o café fosse potente
q.b. para me abrir os olhos ou, de certa maneira, para me sentir confiante que
isso tenha acontecido
- é tão mais frequente a vez em que nós partimos das
(nossas) crenças e as cremos como
factos, embora ainda que só sejam nossos, do que nós partirmos dos factos para
gerar as nossas próprias crenças (aí estamos totalmente ausentes de percepção)
e aqui o único facto é científico e diz que o café desperta -
depois, uma vez desperto, lá seguiria eu para o meu destino
inicial: a paragem de autocarro que me traria até aqui a partir de onde agora
escrevo. Tinham-se passado uma dezena de minutos quando dei contas da minha
decisão quanto à paragem: estava a subir a espécie de mini-escada composta por
dois degraus que dá acesso ao café do costume, o café onde me sirvo para
abastecer tabaco de enrolar e, em tempos de urgência, para comprar daquelas
mortalhas de combustão lenta que são precisas à queima-roupa e é claro que
também dou tributo aos travesseiros lá vendidos a metade de um euro,
basicamente cumpria os pré-requisitos: café potente, sala de fumadores e bom
ambiente.
I
-Diz, jovem
- Bom-dia. É um café, por favor.
respondi-lhe enquanto me acomodava junto ao balcão. enquanto
as pérolas do café se revestiam de água e se liquidificavam num todo espumoso,
o senhor do café, o senhor Atento, mantinha alguma conversa com os seus
clientes. aproveitei esse compasso para enrolar um cigarro. e foi ali que
comecei oficialmente o dia, por crença, totalmente mais animado e com mais
vontade em aproveitar o sol que vinha lá de fora e que aquecia ali aquele
entrada que quase convergia com o início do balcão. mas o ambiente estava tão
agradável que me deixei acomodar pelo bater do sol que ali adornava aquela zona
e não satisfeito decidi celebrar o começo do dia numa repetição da dose: todo ali
empastado ao balcão a pedir um segundo café e a enrolar um segundo cigarro
(sim, mas não me massacrem já antecipadamente pelos dois cigarros compassados
por um intervalo de tempo tão escasso, que não o costumo fazer por hábito). as
pálpebras ficticiamente já estavam menos inchadas e menos disformes, agora
focava-me no que me chegava aos ouvidos, nas conversas em paralelo que se iam
estabelecendo naquele café, naturalmente acabei presos a uma em que o senhor Atento
estava inserido
(do senhor Atento nunca soube muito por empatia profunda deste
em reservar-se, nunca me disse muito mais além de me inquirir acerca das minhas
pretensões enquanto cliente do seu estaminé, um bom-dia e o que vai querer?, um
café é só um minuto. esta, regra geral, é, ou sempre foi a diversidade de
expressões de que se mune para me receber e tratar. é o caso inverso da sua
mulher por exemplo, que habita no estaminé em horários dedicados ao descanso do
marido que, como já me contou uma vez, entre tantas outras coisas, que o seu
marido teve de tomar decisões de uma complexidade tamanha e que talvez daí
advenha este seu jeito peculiar em ser
- é engraçado conhecer as estórias das pessoas pela voz das pessoas
que lhe são próximas – por norma as coisas tornam-se sempre mais coloridas, quem
assume o papel de orador consegue-se transcender na escala das emoções e
consegue superar um pequeno obstáculo que é inato quando toca a falar da vida
com quem a versa – há sempre premissas exteriores que impedem que essas
estórias, as que temos dos outros, nunca cheguem nos mesmos moldes a quem as
escreveu e desconfio que o problema disso não seja propriamente nosso, ou da esposa
do senhor Filipe, ou meu, é comum a todos nós que nos regemos pelas emoções e
pela documentação delas – uma documentação requer um contexto e o que ficou
para trás é hoje mirado com fascínio. do senhor Atento se pinta um respeitável
e admirável homem por uma série de estórias que aqui não vou agrupar, talvez um
dia haja um contexto melhor para documentar tudo isso
- mas eu nunca consegui ter argumentos para lhe traçar um
perfil fidedigno, por falta de interacção, suponho. por detrás de um balcão cai
sempre bem a reserva de quem o protege porque isso se reveste também numa
espécie de auto-protecção sabe-se lá contra e porquê, mas também pode cair bem o
contrário (e até é mais frequente a gente deixar-se cair em graça por esta
doutrina, a do senhor Simpático). de qualquer maneira, só existe um parâmetro
totalmente fiel e isento de analisar tudo isto: quem lá for, ao café do senhor Atento,
será sempre visto como um cliente, logo há toda a legitimidade do mundo em que
ele queira adoptar esta maneira de abordar o seu dever, a da isenção – a da inconsciente
auto-protecção que as pessoas fazem de e para si)
nunca o tinha visto a ser muito comunicativo durante um
largo período de tempo, embora quase sempre achasse pertinente aquilo que
dizia; do esquisso de primeiro grau que lhe tracei estou há anos a limar
arestas à sua volta e hoje subitamente aparece-me ele todo lampeiro, pronto
para me foder a modelação, quebrar alicerces e obrigar-me a repensar sobre tudo
vindo aqui a escrutinar acerca do que me disse
II
em primeira instância a abordagem até mim foi outra, um dos
clientes verbalizava em voz alta a ideologia que queria implementar na sua
capoeira das galinhas – uma ideologia fascista, mas aplicada a galinhas, galos
e derivados, a vertente da diferenciação cromática, no fundo a apologia ao
racismo, mas em galinhas, galos e derivados. não o sei o nome do senhor que
sustentava a sua pobre e risível tese, mas o senhor Atento interessou-se em
saber as razões que estavam na origem da vontade daquele homem, que às oito da
manhã já estava a malhar o seu segundo martini com cerveja, em querer separar
os galos por cores. os contornos da história alargaram-se e então passou a
saber-se que naquela capoeira havia um galo, que era de uma tonalidade
diferente da de todos os outros, que era problemático e que por ser o único que
era problemático devia ser totalmente isolado,
-meto lá uma rede, a meio da copeira, e isolo aquele filho
da puta que não me deixa dormir sempre a meter-se com os outros cabrões. Só não
o mato
ainda não morto porque ainda não está no ponto, mas que
devia ser separado todos os demais. Daí que o senhor Atento tenha-lhe dito que
aquilo era estúpido, brincando com a situação, mas dizendo em tom sério
- faça um muro grande lá pelo meio, que é oportunidade de
negócio aqui para este camarada. já o vi fazer aí projectos no AutoCAD, ele
faz-lhe um projecto de saldo e assim você pode ser um nazi à vontade, não é
verdade?
Aquilo causou gargalhada e um posterior silêncio, por eu nunca saber muito bem como reagir a este tipo de situações (de vez em quando assombra o constrangimento social). disse-lhe
que estava atento ao que se passava em seu redor, pelo pormenor de autoCAD, enquanto lhe sorria e retirava da carteira
o dinheiro que me seria cobrado pelos dois cafés. Pago, o senhor Atento dá-me a
factura, entrego-lhe a moeda de um euro e as duas moedas de cinco cêntimos, ele
recebe-as, dou a volta, pego na mochila que estava no chão, coloco-a às costas
e preparo-me para dizer bom trabalho, e obrigado mas foi interrompido antes
sequer de dar indícios que algo iria ser verbalizado por mim. era a voz do
senhor Atento a atentar-me:
III
- as olheiras pesam, tem cuidado, que não te tenho visto de
outra maneira e lembro-me que até tinhas uns olhos todos verdes e abrilhantados
quando eras mais novo. (dá-te descanso e lembra-te sempre que descanso não é a
ausência de trabalho. às vezes a ausência de trabalho ou de algo que nos torne
activos é que te cansa, é um belo paradoxo porém menos ambíguo que tudo aquilo
que passe por nós. são as alternativas e os vários caminhos que nos distraem,
não é a viagem em si. não durmas, mas pensa menos rapaz). da fonte áudio só
saiu o pedaço de texto que não está limitado por parênteses, a outra parte foi
a subentendida e do senhor Atento, do pouco que lhe atentei
sei tem um cartaz de cortiça totalmente preenchido por
identificações dos ciclistas, com aquelas numerações todas, numa das paredes do
seu café – é um devoto das duas rodas e gosta de ver, ao mesmo tempo que a TV
transmite a corrida, o percurso que os ciclistas têm de fazer, subidas e
descidas– vê-o no Google Earth e fá-lo, presumo para traçar previsões acerca do
futuro da corrida, escrutinar acerca do futuro, pensar e prever e o seu próprio
raciocínio. no fundo, isso faz dele um interessado em saber: esse simples facto
serviu de fio condutor para que pudesse traçar e esculpir moldes para que
assentar todas as minhas previsões do senhor Atento como alguém que goste de
saber, mas hoje fiquei a saber que são os senhores Atentos das nossas vidas que
às vezes nos podem guiar, nos podem acompanhar de uma maneira tão pouco
presente que isso lhes dá espaço e tempo para se aprofundarem em pequenas
coisas de nós.
em tons de poesia apetece dizer que nós somos Senhores Atentos
de alguém e isso, podendo não ser suportado por uma relação recíproca, quer
dizer que todos nós todos somos passíveis de ter um desses senhor à nossa
beira, seja isso no café, na caixa de super-mercado ou num desses pequenos
espaços onde estamos sujeitos a esses olhares mais isentos. e é sempre bom ter
na retina a fruto da retina de outra pessoa, seja por uma olheira mais vincada
ou por três pedaços de vida que nos tiraram: de alguma maneira, de olhares
distantes e longínquos se faz a primavera e esta ainda agora começou.